No princípio era palha e só. Mãos embaralhadas, não necessariamente
sabedoras de que aquilo que estavam fazendo era arte, derramavam sangue
pelos cortes que a palha seca ia fazendo nos dedos. No princípio era
utilidade vinda da carnaúba. Era ganha pão. Cestos que seriam utilizados
para levar ou trazer qualquer coisa. No princípio era interior,
escondido de todo o resto da humanidade entre morros.
Agora, do alto de uma ladeira íngreme, veem-se algumas casinhas em torno
de uma igreja e uma espécie de polo artesanal. É ali onde uma arte sem
nenhuma mudez impera e ganha o mundo. Várzea Queimada, situado na cidade
de Jaicós, é um típico povoado destes que encontramos pelo interior do
estado. É um lugar quase esquecido, em que as casas na maioria são
desprovidas de banheiro e as torneiras não têm água. Onde sempre se vê
alguém sentado na calçada, observando o pôr do sol por detrás das
serras. É um lugar onde não se tem telefone, nem internet. Um local
longe de todo o resto do mundo, mas que com uma essência artística
transformadora, que fez com que o local fosse mundialmente conhecido.
Com apoio da gestão municipal, o povoado ganhou incentivo e
desenvolveu um trabalho de artesanato de cestaria, dando continuidade a
uma forma de produção existente no lugar desde muito tempo. A parceria
durou apenas um ano, mas os artesãos não quiseram parar, instalaram
novas formas de produção e resolveram continuar. "Nós queríamos uma
forma de nos tornar independentes. Procuramos continuar o trabalho que
gostamos de fazer. Foi então que tomamos a iniciativa de continuar
produzindo", afirma a artesã Marcilene Luzia.
Novas perspectivas
Numa quarta-feira, primeiro dia do mês de fevereiro de 2012, mais de
quarenta pessoas, entre elas designers, arquitetos e estudantes,
desembarcam em Várzea Queimada, depois de rodarem na estrada por mais de
5 horas, depois de terem saído de Teresina. Naquele instante nascia o
novo modelo de produção artesanal daquele povoado.
Durante os 15 dias seguintes essa equipe ficou responsável por
desenhar, dia e noite, junto com a comunidade, uma nova possibilidade de
futuro através da geração de oportunidades
econômicas
e sociais, utilizando o que aquele povo sabia fazer de melhor. Foi
assim que começou o projeto A Gente Transforma (AGT) 2012 - Chapada do
Araripe no Piauí, que possibilitou a continuidade do trabalho com o
artesanato de palha e o surgimento de novas peças, oriundas de outros
materiais.
Criado pelo designer Marcelo
Rosenbaum, o projeto visa inserir grupos de pessoas no universo da
criação. A primeira edição aconteceu em 2010 na periferia de São Paulo,
no Parque Santo Antônio, e transformou a comunidade com ações de
empoderamento por meio do uso de cores e projetos de inclusão social.
No Piauí, já em sua segunda edição, o AGT tem como principal objetivo
inserir o artesanato no mercado de decoração, um segmento que movimenta
no Brasil, anualmente, 60 bilhões de reais. Além disto, o projeto busca
ainda a inclusão dos populares na produção artesanal.
No que diz respeito ao potencial econômico, sua principal característica está em atender os requisitos da Nova
Economia:
inclusiva e sustentável. Tem como visão de futuro ser um negócio
social, empreender e, ao mesmo tempo, gerar impacto social, econômico e
minimizar os impactos ambientais em suas áreas de atuação, tendo como
plataforma principal o design sustentável.
Durante duas semanas, Marcelo Rosenbaum coordenou os grupos de trabalho
em Várzea Queimada. Um dos grupos, formados por artesãs da palha de
carnaúba, árvore típica da região, contou com a colaboração dos
designers portugueses Rita João e Pedro Ferreira do Studio Pedrita.
O
outro grupo, de artesãos da borracha, contou com a ajuda da designer de
joias piauiense Kalina Rameiro. Durante este momento intensivo de
produção, os grupos criaram, ao todo, uma coleção com 30 peças,
intitulada "Toca", que rememora as furnas encontradas no Morro dois
Irmãos, localizado próximo ao povoado. Toca da Borracha e Toca da Palha
foram as duas categorias criadas, com as quais foi possível produzir
peças de decoração e joias.
Outro trabalho foi
coordenado pelos arquitetos Henrique Pinheiro e Tomaz Lotufo e contou
com a participação de 18 estudantes de todo Brasil. O resultado foi a
construção de uma casa para os artesãos se reunirem e trabalharem: dois
edifícios construídos em terreno.
Para
Rosenbaum o projeto tem o potencial de levar o nome do local para o
mundo, dando fim ao anonimato da arte. "Acreditamos em novos modelos
para o desenvolvimento do país. O AGT traz um olhar novo para o design,
porque tem como objetivo o desenvolvimento local a partir da forma como
se relaciona com a comunidade e com o mundo, conectando o local com o
global.
Leva Várzea Queimada para o mundo, com sua história impressa em
produtos de design de raiz feitos pela comunidade. Também leva geração
de renda e empoderamento a partir da vocação genuína dessa comunidade
que é o artesanato", explica o designer no site de sua agência.
Em abril de 2012 o A Gente Transforma foi apresentado na exposição
Fronteiras, com curadoria da revista Casa Claudia, em um evento paralelo
ao Salão Internacional do Móvel de Milão onde as peças produzidas em
Várzea Queimada puderam ser apreciadas pelos mais importantes nomes da
arte do mundo. O Salão é o principal evento do segmento e recebe
anualmente milhares de arquitetos e designers brasileiros.
Deste o lançamento da pedra inicial pelo AGT, os artesãos se reúnem
numa igreja sem padres e constroem milagres da arte em palhas com as
próprias mãos.
A criação de peças de palha de carnaúba
é uma atividade feita especificamente por mulheres, que fazem todo o
trabalho, menos o corte da palha. Os homens trabalham com a borracha,
reciclando pneus e criando joias e peças de decoração. São peças lindas,
como tapetes, colares, chaveiros, anéis e rosários. Na coleção lançada
nos salões de arte estão presentes lindos tabuleiros, bogoiós, tapetes,
colchões e máscaras.
POR: Francicleiton Cardoso / Portal O Dia